terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

STJ julga uso de música sem autorização em 'paródia' política

União Brasileira de Compositores (UBC) apoia ação de editora que contesta liberação; manifesto reúne centenas de artistas.

Mais de dois anos depois de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) liberar o uso de canções como "paródias" em campanhas políticas, mesmo sem autorização dos seus autores, será julgado nesta quarta-feira (9) o recurso movido pela editora EMI Songs do Brasil (atualmente propriedade da editora Sony/ATV) contestando a decisão. A UBC, a associação Procure Saber e a União Brasileira de Editoras Musicais (Ubem) também participam da ação, como amicus curiae, instrumento jurídico que as torna partes associadas ao processo. As três entidades forneceram informações aos juízes e ao processo para amparar a ideia de que a liberação de paródias sem qualquer controle num contexto político traria enormes prejuízos a quem cria música e vive legitimamente dos seus direitos autorais.

Um manifesto assinado por quase 400 compositores — de Gilberto Gil, Djavan e Adriana Calcanhotto a Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Milton Nascimento, de Emicida, Marisa Monte e Rita Lee a Samuel Rosa, Zeca Pagodinho e Guilherme Arantes — alerta sobre o risco dessa liberação para a atividade de criação musical e para a própria democracia. O entendimento de que qualquer tipo de uso pode ser visto como uma paródia (portanto, de uso livre) abriria uma caixa de Pandora, na opinião de artistas e especialistas, permitindo, por exemplo, que a publicidade empregasse livremente canções com letras alteradas sem qualquer pagamento.

O que motivou a ação foi o uso, pelo palhaço e então deputado Tiririca, da canção “O Portão” (dos versos “Eu voltei, agora pra ficar/ Porque aqui, aqui é meu lugar”) com a letra alterada na sua campanha à reeleição. Representando os interesses de Erasmo e Roberto Carlos, autores da obra, a EMI/Sony recorreu à Justiça. Em novembro de 2019, a 3ª Turma do STJ deu razão a Tiririca, argumentando que as paródias, ou o direito de imitar canções, são permitidas pela lei de direitos autorais (9.610/1998) e independem do contexto. A lei, contudo, não menciona campanhas políticas.

“Uma decisão inexplicável. O absurdo chega ao ponto de fazer com que o autor veja, passivamente, sua obra associada a iniciativas repulsivas contra as quais lutou toda a sua vida como artista e cidadão”, criticou na época Aloysio Reis, diretor-geral da Sony/ATV Music Publishing Brazil.

Ele se referia à associação, sem qualquer controle, do nome do compositor aos de políticos com cujas ideias não concorda. Isso, no entendimento de juristas, é um evidente desrespeito ao direito moral, conceito previsto em tratados internacionais chancelados pelo Brasil segundo o qual, mesmo que vender seus direitos patrimoniais, um autor pode se opor ao uso de sua criação caso ele fira suas convicções ou sua honra.
A expectativa, agora, é que o julgamento do recurso da editora, com apoio da UBC, Ubem e Procure Saber, reverta a decisão anterior. "(Caso isso não ocorra), haverá extrema insegurança jurídica e o inequívoco erro de interpretação da lei de de direitos autorais, admitindo o crescimento de muitas e novas demandas judiciais. Entretanto, enquanto prevalecer o entendimento do STJ, os usuários em geral se apropriarão da decisão para o uso irrestrito de obras musicais", alerta Sydney Sanches, advogado especialista em direitos autorais e consultor jurídico da UBC.

Ele reforça o grave risco à própria democracia, se o colegiado não corrigir a decisão anterior. "Em 2019, a preocupação do Judiciário com eleições legítimas e um processo eleitoral transparente, livre da desinformação e fake news, já estava na pauta, mas era menor do que hoje. Nos últimos três anos, os atos atentatórios à democracia e ao processo eleitoral se intensificaram. O uso de obras musicais alteradas em campanhas eleitorais distorce o cenário politico-eleitoral, pois serve para enganar o eleitor ou cooptar eleitorado por meio de associação de conhecidas canções e seus autores e intérpretes (a políticos). O prejuízo não será só moral ou patrimonial aos compositores, mas um risco para democracia brasileira."

Mesma opinião tem o presidente da Ubem, Marcel Klemm, que alerta para o risco de uma perda de poder de decisão para os compositores. "Vejo com muita apreensão esse julgamento porque ele pode gerar um entendimento errado e abrir precedente para tirar do criador (compositor) a decisão de como a sua criação vai ser usada. Um precedente perigoso, pois quando uma obra é adaptada e utilizada para tirar alguma vantagem comercial ou política, isso é um uso que deve ser previamente autorizado pelo autor."

A preocupação com a perda de direitos também está presente no manifesto assinado por quase 400 compositores brasileiros. Num trecho do documento, eles argumentam:

“Até hoje, nunca houve dúvida de que o uso de obras musicais com finalidades políticas, mesmo que modificadas letras e/ou melodias, sempre dependeu de autorização prévia do titular de direitos autorais. Ou seja, jamais cogitou-se enquadrar como paródia. Entretanto, esse entendimento histórico poderá ser modificado e admitir os usos indiscriminados das obras musicais com fins eleitorais, usurpando a gestão dos autores sobre suas criações. A paródia está prevista na lei de direitos autorais a fim de preservar a liberdade de expressão desde que não venha gerar prejuízo ou descrédito ao criador e sua obra. (...)

No caso de prevalecer o entendimento desfavorável aos criadores, haverá irreparável lesão aos direitos pessoais e às opções ideológicas em razão da interferência nos direitos inalienáveis dos autores, que terão suas criações artísticas - verdadeira extensão de suas identidades - atreladas a valores, opções, ideologias ou governos, eventualmente contrárias às suas convicções. Um verdadeiro risco à integridade do sistema de proteção aos direitos autorais”.

Leia o manifesto na íntegra neste link.

O julgamento desta quarta será levado a cabo por um colegiado de 10 ministros que compõem as duas turmas do STJ que julgam matérias relativas aos direitos autorais. Deles, cinco participaram do primeiro julgamento. "Mas isso não significa que repetirão o entendimento, pois é permitida a revisão, e, como eu disse, o cenário político é outro", afirma Sanches: "Está claro que houve uma interpretação equivocada da norma, que foi lida de forma estreita e sem avaliar os estragos causados para o direito autoral e para democracia. Hoje a luta é pelo direito autoral e por eleições limpas."

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