segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Mulher escolhe adotar bebê com microcefalia vítima de maus tratos

Em casa, Valéria treina com João o que aprende na fisioterapia Foto de: Lalo de Almeida - 22.out.2016/Folhapress

Para muitos, ter um bebê com microcefalia é fatalidade. Para Valéria Gomes Ribeiro, 46, de Paulista, a 15 km do Recife (PE), foi uma escolha, um "presente de Deus". Mãe adotiva de um rapaz de 19 anos, que tem deficiência mental, ela conseguiu a guarda provisória de João, de um ano e meio, que foi retirado da mãe biológica pelo Conselho Tutelar por maus tratos. Ela acorda às 3h para levá-lo de ônibus a uma maratona de terapias e consultas. "Meu sonho é vê-lo andar, falar, me chamar de mamãe ou mainha."
Conheci João logo depois que ele nasceu, em 20 de agosto de 2015. Fui visitar a mãe biológica dele, que já tinha outros dez filhos antes de ter ele e a irmã gêmea.
Sabia que o João tinha algum problema, mas não sabia que era microcefalia. Como sou mãe de um rapaz de 19 anos, deficiente mental, expliquei para a mãe os cuidados que ela deveria ter com uma criança especial.
A partir daí, ela começou a mandar o João todos os dias para a minha casa. Ele vinha no colo das irmãs de oito e de nove anos. Chegava cedo, todo sujo, com os olhinhos remelentos e cheio de xixi. Tinha espasmos e chorava muito, sem parar. A mãe dizia que era susto, que ele não deixava ninguém dormir.
Comigo, ele ficava mais calmo. Parecia sentir o carinho e a atenção que não tinha em casa, onde era cuidado por crianças, jogado de um para outro. Ninguém tinha paciência para cuidar dele. Eu dava banho e comida e, à tarde, as crianças voltavam para buscá-lo.
Um dia tive que correr com ele para uma UPA porque teve uma crise convulsiva. Foi lá que descobri que ele tinha microcefalia. A mãe contou que teve zika na gravidez. Mas ela não entendia a gravidade do problema.
Com o diagnóstico, ajudei a mãe a ir atrás do benefício social [R$ 880] que João tem direito. Depois que ela conseguiu o benefício, acho que ficou com medo de perder a guarda do filho e deixou de mandá-lo para a minha casa.
O Conselho Tutelar estava de olho nela porque uma das filhas tinha engravidado com 11 anos, abortado e ido sozinha para o hospital. As outras crianças menores são cuidadas pela vizinhança. Um dá um prato de comida, outro, um banho.
Da irmã gêmea do João, que aparentemente não tem microcefalia, quem cuida é uma senhora ali da esquina. A mãe gosta de filho assim: que os outros cuidem de dia e mandem para ela alimentado e com banho tomado.
Numa das visitas, o Conselho Tutelar flagrou que o João estava sendo vítima de maus tratos. Ele ia ser recolhido para o abrigo, quando uma senhora que me ajudava com doações me avisou. Eu consegui a guarda provisória dele em junho. Agora estou na luta para conseguir a definitiva. Não imagino mais minha vida sem o João.
Acordo às 3h e pego o primeiro ônibus às 4h20. Só volto pra casa às 20h. As consultas e terapias ficam em lugares diferentes do Recife. Pego uns oito, dez ônibus por dia.
Não posso chegar atrasada, senão já dão falta. Se ele tiver duas faltas, é cortado das instituições do SUS.
Os ônibus estão sempre lotados, as pessoas têm preconceitos, não são solidárias. Olham para ele como se fosse um bicho. Tenho que fingir de surda e muda para não criar confusão. São crianças que não pediram para vir ao mundo da forma que vieram. Elas têm que ter o amor e o carinho de nós que somos mães.
Sou mãe, me sinto mãe do João, quero proteger, cuidar, quero amar mais do que ele já é amado. Minha mãe é avó dele, minhas irmãs, as tias. Todos me ajudam como podem. Só de medicamentos, fraldas, leite especial e produtos de higiene gasto R$ 800 a R$ 1.000. O benefício dele ainda está com a mãe biológica, que não ajuda em nada.
Crio o João com a ajuda de pessoas solidárias, não tenho amparo do governo.
TEMPO INTEGRAL
Tinha um comércio em casa e tive que fechar para poder cuidar dele. A gente para a vida porque não tem tempo de mais nada, nem de cuidar da gente mesmo. Não dá tempo de ir a um clínico, fazer uma prevenção.
Mas vale a pena. O João já consegue movimentar os bracinhos, que antes eram totalmente rígidos. Ele me acompanha com o olhar, sorri, enxerga, escuta. Em casa, montei um canto para trabalhar a terapia com ele, faço o que aprendo com as fisioterapeutas para ele não esquecer.
Meu sonho é ver o João andar, falar, me chamar de mãe ou de mainha. Acredito que a gente vai conseguir.
O João chegou para mim num momento muito difícil. Por causa da obesidade, estava muito triste, achava que a vida estava acabando. No casamento tinha muita briga, muita desunião. Ele chegou e renovou tudo, trouxe mais amor, mais união. Já fiz um voto com Deus que, se eu ganhar a guarda definitiva dele, vou parar de fumar, emagrecer. Se eu não cuidar de mim, como vou cuidar dele?

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