domingo, 31 de março de 2019

“É PRECISO NÃO ESQUECER”: 55 ANOS DO GOLPE DE 1964

Na edição do dia 31 de março de 1965, o jornal O Globo comemoraria o primeiro aniversário da “revolução gloriosa”. No editorial “É preciso não esquecer”, o jornal carioca convocava seus leitores a celebrar o “primeiro aniversário de um acontecimento tão importante como foi a Revolução Democrática”. O editorial louvava a atuação da aliança golpista e pedia ao povo que tolerasse os sacrifícios que a “revolução” pedia. De acordo com o grupo, em mais um malabarismo retórico, que vem caracterizando a atuação de sua linha editorial, era preciso não esquecer que a “revolução” era necessária. Para os editores do periódico, contraditoriamente, para salvar a democracia era preciso acabar com ela. “A Revolução é irreversível e consolidará a Democracia no Brasil”, lema que estamparia os documentos oficiais produzidos pela ditadura que apenas se iniciava.


O argumento do jornal, que reside no princípio da inevitabilidade de certos processos históricos, passaria a ser o mote dos apoiadores do golpe de 1964 e da ditadura militar que seria instaurada em seguida. A intervenção arbitrária teria sido feita para “salvar o Brasil”. A fragilidade da premissa encobria a trama histórica, que havia nos conduzido ao projeto autoritário de 1964. A justificativa buscava esconder os interesses que haviam mobilizado a aliança que levaria os generais ao comando do país. Nas décadas seguintes, as narrativas oficiais celebrariam os “feitos da revolução gloriosa”, omitindo do público as arbitrariedades, a violência, as práticas de corrupção, os assassinatos políticos, enfim, o embrutecimento de nossa vida coletiva com o argumento de que: era necessário.

“A HISTÓRIA É O TEMPO ENCADEADO EM EXPLICAÇÕES SATISFATÓRIAS E PROVISÓRIAS”.

Passadas mais de cinco décadas desde o remoto abril de 1964, é preciso não esquecer disso. Ao historiador compete a tarefa de lembrar à sociedade aquilo que ela deseja esquecer. Retirar o véu que insiste em encobrir o passado que se busca olvidar. Não é uma função simples. Em sociedades marcadas por experiências autoritárias recentes torna-se tarefa das mais difíceis; e, ao mesmo tempo, das mais necessárias. Países que passaram por experiências violentas de alguma natureza – ditaduras, regimes autoritários, guerras, conflitos internos e outras – recorrem aos estudiosos das relações humanas, em busca de explicações satisfatórias para os eventos que aconteceram no passado. Aos estudiosos das ações humanas no decorrer do tempo, competiria a tarefa de oferecer sentido ao passado, sem com isso imbuir-se do papel de juiz da História.
Esta tarefa, ou seja, a produção de conhecimento historiográfico sobre eventos próximos do nosso entorno temporal e/ou “afetivo” representa desafio extra aos historiadores que se debruçam sobre o passado recente. Em parte, isso se dá porque os vínculos que reúnem a história do passado recente com a cena política parecem bloquear a possibilidade de reflexão serena, equilibrada e embasada em documentação. A tarefa, no entanto, é fundamental; e, por meio de um amplo aparato teórico e metodológico, é possível alcançar resultados satisfatórios (ainda que provisórios).
Entre nós, brasileiros, esses fenômenos permanecem um traço marcante em nossa trajetória. Em primeiro lugar, porque o golpe de 1° de abril de 1964 e a ditadura subsequente, que se instalaria pelos próximos 21 anos, representam eventos fundamentais para a compreensão do país que emerge neste princípio de século XXI. Ao mesmo tempo, porque entre nós, em nossa condição de comunidade política, há um conjunto de forças que insistem no “esquecimento” de muitas das dimensões de nosso passado autoritário. Pode-se dizer até mais: que insistem no uso político de determinadas memórias, com o intuito de “revisar” a história do período, ressignificando-a em benefício de projetos autoritários no tempo presente.
Ao mesmo tempo, porque a sociedade brasileira que emerge neste princípio de século mantém o autoritarismo, em suas inúmeras manifestações, como traço definidor de nossas relações políticas e sociais. As “soluções” arbitrárias têm representado no imaginário popular um dos recursos mais sedutores para o enfrentamento dos conflitos sociais, econômicos e políticos em nossa história recente. E, isso acontece, em boa medida, porque o golpe de 1964 e a ditadura militar representaram a exacerbação dos traços autoritários de nossa cultura.

Os anos que separam a chegada dos militares ao comando do Palácio do Planalto, com o general Castelo Branco em abril de 1964 e, a melancólica retirada em meados da década de 1980, com João Figueiredo, assinalam um período extremamente complexo. Foram décadas de transformação interna acelerada, de crescimento desordenado, de concentração de renda e de poder decisório; foram anos de “favelização” dos centros urbanos, de precarização da vida, de explosão da violência. Anos de perseguições e assassinatos políticos, de tortura oficializada, de repressão, de medo. Foram os anos que reforçaram traços de uma sociedade marcada pela extrema violência, pelos altos índices de criminalidade e pela brutal desigualdade social.
Foram ao mesmo tempo, anos marcados pela “dimensão revolucionária”, que a possibilidade de mudança prometia. Foram os anos da expansão das atividades econômicas, da multiplicação da indústria, da “revolução sexual”, da revolução latino-americana, dos barbudos da Ilha. Anos de (alguma) emancipação feminina, de novos padrões culturais; foram os anos de surgimento do rock (e do rock nacional), da música popular brasileira de João Gilberto, de Tom Jobim, de Vinícius de Moraes, de Cartola; de Gal Costa, de Elis, Malu mulher ainda sem medo e de Ney Matogrosso, deslumbrantemente desafiando a cafonice e o conservadorismo. Vocês se lembram do Dzi Croquettes? Anos das discotecas, dos festivais de música, da descoberta dos corpos, do amor livre, do coração transplantado, pulsando forte e apontando um futuro promissor.
E isso, sem falarmos nas transformações no resto do mundo.
Hoje, 55 anos depois do golpe, voltamos a falar sobre o movimento civil-militar que, no dia 1° de abril de 1964, destituiu o governo do presidente João Goulart e possibilitou o início da ditadura. Por quê? Parece-nos que a resposta para essa questão, em larga medida, está aqui entre nós: porque o golpe de 1964 é o acontecimento histórico decisivo para a compreensão da sociedade que somos hoje; é o evento central para compreendermos a persistência do autoritarismo entre nós e, ao mesmo tempo, os mecanismos violentos e discricionários que sustentam a existência de uma sociedade violenta, reacionária, desigual e cruel.
Assim, não podemos esquecer que nós seguimos o esforço de compreensão desses anos turbulentos, porque o sofrimento causado pelo terrorismo de Estado acompanha a vida de milhares de brasileiros que sofreram (ainda sofrem) diretamente com a violência da ditadura. Como lembrou o historiador Marcos Napolitano, em entrevista que nos concedeu: a montagem de um Estado terrorista é uma opção política, não uma contingência histórica.

Fonte: www.historiadaditadura.com.br

Nenhum comentário :

Postar um comentário