domingo, 18 de maio de 2025

10 anos depois: os desafios das crianças com microcefalia no Rio Grande do Norte


Em outubro de 2015, cerca de um mês antes do decreto de emergência em saúde pública motivado pelo aumento de casos de microcefalia associados ao vírus Zika, Maria da Guia dos Santos decidiu adotar Maria Victoria, uma bebê que havia sido rejeitada pela mãe biológica antes mesmo de nascer. Apesar de saber das condições da criança – além de microcefalia, a menina teve paralisia cerebral, meningite e hepatite – Daguia, como é conhecida, entendeu algo essencial, conforme ela mesma relata. “Victoria precisava de uma mãe, então, por que não adotá-la? Foi o que eu fiz e faria novamente, sem pensar duas vezes”, afirma, convicta.


Praticamente uma década depois – a menina vai fazer 10 anos em outubro – as duas, que moram em Nova Parnamirim, na Região Metropolitana de Natal, construíram uma conexão que tem como base o amor, fundamental para encarar os inúmeros desafios diários. “O amor cura, é o melhor remédio para qualquer doença”, frisa Daguia, hoje com 51 anos. Antes de falar das dificuldades, Maria da Guia, que trabalha como consultora de planos de saúde, recorda como aconteceu o encontro com Victoria. “A mãe biológica dela tentou interromper a gravidez. Foi isso que levou ao quadro de paralisia cerebral. A microcefalia é associada à zika. Quando nasceu, Victoria foi para a UTI. Fiquei sabendo da história dela uma semana antes da alta”, conta.


“Ela ia para um abrigo. Pensei o quanto seria difícil a vida daquela criança, porque as pessoas rotulam muito na hora de adotar, então, não olhei para diagnóstico algum, só quis ficar com ela”, completa a consultora. Ao longo da caminhada juntas, os desafios não pararam de surgir. No final do ano passado, Victoria recebeu um novo diagnóstico, de autismo severo. Apesar disso, cada evolução da menina representa um alento para Daguia. “Ela fica de pé, dá alguns passinhos e chama mamãe”, relata, orgulhosa.


A dona de casa Adelma Leandro, de 43 anos, sonha em ser chamada de mãe até hoje por João Victor. Por conta do quadro de microcefalia, o menino, de 9 anos, não fala. Ainda assim, ela não desanima. “A maior conquista é estar ao lado dele em todos os momentos”, afirma. O diagnóstico da condição foi dado quando Adelma estava com cinco meses de gestação. Ela conta que sequer compreendeu direito o que estava acontecendo.


“Era algo novo, até mesmo para os médicos. Tive Zika no começo da gravidez. Foi um quadro de muito sofrimento, com dores intensas, mas eu não tinha noção do que essa doença iria provocar no meu filho. Me falaram que ele tinha malformação, mas eu não imaginei que seria assim. Foi um susto. Quando ele nasceu, não parava de chorar dia e noite. O pediatra falou, um tempo depois, que era um choro neurológico, por causa da microcefalia”, descreve Adelma.

Busca por respeito e assistência

Os desafios de cuidar de uma criança com microcefalia estão por toda parte e exigem dedicação intensa. Daguia Santos conta com uma pessoa que auxilia nos cuidados com a filha enquanto ela está trabalhando. Não é a mesma situação de Adelma Leandro, que teve de deixar o emprego em um centro de distribuição de uma empresa de confecções após o nascimento de João Victor. A preocupação com as famílias que têm crianças com a condição levou Daguia a criar a Associação de Mães Especiais (AME).


A AME está em processo de instalação da nova sede, na zona Norte de Natal e, por isso, os serviços estão temporariamente suspensos. “A gente presta assistência por meio de acolhimento às mães e às crianças. São oferecidos acompanhamentos de fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e neuropediatria”, explica Daguia, que faz um apelo para manter a associação funcionando. “A manutenção da AME é importante porque nós prestamos apoio não somente às crianças, mas às mães também, afinal, é fundamental cuidar de quem cuida”, diz. A associação é mantida por meio de doações feitas via pix (chave: projame.rn@gmail.com) e atende atualmente 62 famílias de todas as regiões do Estado.


“Tão essencial quanto cuidar das crianças é cuidar das mães. Algumas me ligam à meia-noite chorando porque não sabem o que fazer diante de certas situações. Elas precisam de acalanto. Passamos por momentos difíceis na AME, por isso, buscamos uma nova sede, que será aberta em breve. Precisamos bastante de ajuda”. Daguia cita que os serviços em geral, e especialmente na rede pública de saúde, para as crianças com microcefalia, são deficitários. Ela defende que haja uma atenção maior à assistência para essas crianças. “Tenho conhecimento de um menino que precisava de um exame de alta complexidade urgente, mas a autorização para o procedimento só chegou um mês depois da morte dele”, relata.


Adelma, que mora em Ceará-Mirim, na Grande Natal, conhece de perto essas lacunas. João Victor faz fisioterapia, fono e hidroginástica, mas no momento está com acesso a apenas dois desses serviços. “Ele não está frequentando as sessões de fisioterapia porque falta profissional. Estamos aguardando a Prefeitura encontrar um novo fisioterapeuta. Além disso, o menino chegou a passar nove meses sem acompanhamento com um neuro”, diz. O acesso às escolas é outro gargalo. “Não é um ambiente preparado para os nossos filhos”, fala Daguia, que já passou por episódios onde Maria Victoria foi rejeitada por algumas instituições de ensino.


“Passei por oito escolas e nenhuma delas aceitou a menina. Respirei fundo, abracei minha filha e fui para casa”, relata. As situações de preconceito e exclusão às quais crianças e familiares estão expostas não são raras. “Desde que adotei Victoria, nunca mais fui chamada para um aniversário”, comenta Daguia. Com Adelma e João Victor não é diferente. “É claro que tem muita gente que chega e abraça, porque entende a condição. Mas tem gente que não e isso nos afeta emocionalmente”, afirma a dona de casa. O receio em torno dos cuidados com as crianças faz com que as mães não queiram se afastar dos filhos em nenhum momento. Daguia, por exemplo, foi internada há cerca de 15 dias por conta de uma arritmia cardíaca. Diante das preocupações com Maria Victoria, no entanto, pediu para deixar o hospital mediante assinatura de um termo de responsabilidade. “Não havia escolha”, aponta.

RN tem 138 casos de microcefalia por zika

De acordo com o Ministério da Saúde (MS), a microcefalia é uma anomalia congênita caracterizada pela redução do perímetro cefálico (redução da cabeça e do cérebro. No Rio Grande do Norte, segundo a Secretaria de Estado da Saúde Pública, com base em dados recentes do MS são 138 casos da síndrome congênita associados à infecção da mãe durante a gestação por Zika vírus, um dos fatores de risco para a condição. Em 2015, os casos associados dispararam, o que fez com que o MS decretasse emergência em saúde pública no Brasil até 2017.

Somente no período, foram registrados 4.595 nascidos vivos com esta malformação no País.
Além de Zika, a presença de outras variantes genéticas patogênicas ou alterações cromossômicas também estão relacionadas à microcefalia. Dentre essas variantes, segundo o MS, estão infecções gestacionais, sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes.

Doenças ou condições maternas, como diabetes e desnutrição, bem como exposição intrauterina a substâncias como álcool, radiação, e medicamentos também representam causas para a condição. A microcefalia pode ser diagnosticada já no pré-natal, de acordo com o método adotado pelo médico. Em recém-nascidos, a identificação é feita por meio de exames físicos, como a aferição do perímetro cefálico e a realização de exames neurológicos, como tomografias.


A microcefalia não possui tratamento específico, mas existem ações de suporte preconizadas pelo Sistema Único de Saúde para acompanhamento. As ações envolvem o estímulo precoce ao desenvolvimento da criança, por meio de avaliação auditiva, visual, motora, cognitiva e da linguagem. Já a prevenção se dá com o combate aos fatores de risco, além de proteção contra o mosquito que transmite o Zika vírus (Aedes aegypti), o que pode ser feito com o uso de roupas de manga longa e calça comprida.


Tão importante quanto combater os fatores que podem levar à condição é o enfrentamento às formas de preconceito e exclusão às quais estão submetidas as pessoas nessa condição. “A gente vive, um dia após o outro, em um universo cheio de obstáculos, mas também de aprendizagens. Uma mãe vai abraçando a outra e assim nos preparamos o tempo todo para o diferente, porque se agora está tudo bem, daqui a pouco a criança convulsiona e tudo muda”, relata Daguia Santos.

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