Por que torcer por um país que não se lembra da gente?”, questiona Túria
de Souza, de 57 anos. Pouco mais de uma hora antes do início da partida
do Brasil
contra Camarões, realizada nesta segunda-feira, ela retirava as roupas
secas de um varal improvisado nos fundos da Igreja Nossa Senhora do
Loreto, na zona norte do Rio, a cerca de um quilômetro do aeroporto
internacional do Galeão. No quintal, vazio e sem enfeites, quase não
havia sinal da Copa que convulsiona o País desde o dia 12 de junho.
Túria vive em um galpão ao lado da igreja junto a outras
cerca de 300 pessoas desde o começo de maio. Antes disso, acampou com
eles em frente à Prefeitura do Rio e à Catedral Metropolitana da cidade.
O grupo é remanescente das mais de cinco mil pessoas que invadiram,
ainda em março, um prédio abandonado da antiga Telerj (empresa de
telecomunicações do Estado do Rio de Janeiro).
O caso ganhou os jornais no dia 11 de abril, quando os
moradores foram removidos com violência pela Polícia Militar, que
executava a reintegração de posse do terreno. Muitos perderam os bens e
documentos. Houve feridos e as cenas do confronto ganharam atenção
mundial.
No local, reformado no ano passado para receber os
peregrinos da Jornada Mundial da Juventude, os moradores se dividem em
barracas de camping compradas pelos freis e organizadas em ruas. Há três
banheiros masculinos e três banheiros femininos, com três duchas cada
um e a alimentação é fornecida pela igreja, que recebe e distribui as
doações.
Há
dias em que não há almoço e jantar para todos. As mães se ressentem da
falta de leite em pó e biscoitos, entre outras provisões. As luzes do
galpão, que protege as barracas da chuva e barra um pouco do frio que
começa a abater a cidade com a chegada do inverno, são ligadas
automaticamente assim que escurece e desligadas às 23h.
Cada morador é responsável pelo seu espaço e as famílias
fazem malabarismos para se acomodar nas barracas. “É como coração de
mãe”, diz Mariangela Pereira da Silva, de 43 anos, que dorme ao lado dos
filhos de 10, 13 e 14 anos.
Dentro das pequenas casas improvisadas é possível ver
malas de roupas, colchões, ventiladores, aparelhos de som e televisões.
Algumas barracas contam até com fogão e mesas e há quem não se desgrude
do smartphone ou tablet.
Boa parte dos moradores da antiga Telerj que permanecem
acampados na igreja são mulheres e crianças. “Os homens não aguentam o
tranco”, diz Angela Maria Dias Conceição da Silva, de 60 anos, que vive
no local com a neta, de 15 anos. Na sua barraca, arrumada com esmero, há
um colchão inflável, comprado graças a um bico que ela fez como
panfleteira, TV, ventilador e até uma muda de coqueiro, colocada ao lado
da porta junto a um pano de chão que serve de capacho. “Vou levar para a
minha futura casa”, promete.
Desde que foram expulsos da ocupação, muitos moradores
buscaram abrigo na casa de parentes e amigos ou ficaram sem moradia. O
grupo que permanece na igreja resiste e espera uma solução do governo,
seja o cadastro no aluguel social ou a entrega de um apartamento do
Minha Casa, Minha Vida. Alguns pedem apenas que os deixem voltar para o
terreno da Telerj.
Os ex-ocupantes do prédio da Telerj são uma pequena
mostra do que tem sido o reflexo do Mundial para os moradores mais
carentes do Rio. Eles argumentam que além de elevar os preços dos
aluguéis devido à especulação imobiliária, os preparativos para os
grandes eventos retiraram milhares de pessoas de suas casas, com as
remoções e reassentamentos para obras relacionadas ao torneio. Segundo a
Anistia Internacional, 87 mil pessoas foram removidas entre 2009 e
julho de 2013.
A prefeitura informou que está adquirindo a área onde
funcionava um almoxarifado da empresa Oi, no Engenho Novo, a antiga
Telerj, e que deve construir lá Bairro Carioca 2 através do Programa
Minha Casa, Minha Vida. Os apartamentos, no entanto, devem ser
destinados a pessoas já cadastradas e na fila de espera para o sorteio
dos imóveis, o que impede uma solução imediata. Também teriam sido
ofertadas vagas em abrigos da Prefeitura, rejeitadas pelas famílias.m dúvida sobre o futuro dela e dos outros moradores, a
manicure Poliana Alves, de 25 anos, segue pagando o aluguel de R$ 300 em
um barraco no qual morava antes de participar da invasão. Ela agora
divide uma barraca com o marido e os filhos. O mais novo, Matheus, de um
ano e um mês, usava uma camisa pirata da seleção, comprada a R$ 6 por
Poliana.
Ele
fez aniversário morando no quintal da igreja e é um dos xodós do
“bairro”. Aprendeu a andar sob o olhar dos PMs no acampamento em frente à
Prefeitura. “Eles até tentavam ficar sérios, mas não tinha como não rir
vendo aquele bebê de fraldas caminhar dois três passos e cair”, diz a mãe, coruja.
Na hora do jogo, nada do burburinho tradicional e da
excitação com a seleção. Pequenos grupos se reuniam perto de televisões,
mas a maioria ignorava o Mundial, enquanto as crianças, boa parte com
camisas verde e amarelas, corriam, brincando entre as barracas. Houve
até quem trocou a partida por novelas mexicanas. O silêncio era quebrado
apenas pelos gols, que deixavam os pequenos em frenesi e motivavam
gritos por todo o acampamento.
Angelo Gomes da Silva, de 31, que divide uma barraca com
a irmã Vitória, de 32, chegou do trabalho em uma gráfica cantando
“Brasil, mostra a tua cara” a plenos pulmões. Ele decorou a sua casa com
fitas verde e amarelas, mas depois de assistir ao primeiro tempo, no
entanto, preferiu ir pintar o cabelo, sentado de costas para uma
televisão em que se via a partida.
Quando se lembra do Mundial, as lágrimas correm pelo
rosto de Túria, que cuida das crianças enquanto as mães saem para
trabalhar ou procurar emprego. “Nossos irmãos que fizeram a obra do
Maracanã e a gente não pode nem passar na porta. Nasci na época da
primeira Copa, meu maior sonho era ver a um jogo do Brasil ao vivo".
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