Ensino presencial está suspenso
por causa do coronavírus. Professores e alunos mostram que desigualdade fica
ainda mais evidente com projetos de educação remota.
Por causa da pandemia do novo
coronavírus (Sars-CoV-2), escolas suspenderam as aulas presenciais e passaram a
buscar formas alternativas de manter o processo de ensino-aprendizagem durante
a quarentena: usam principalmente aplicativos e plataformas on-line.
A estratégia adotada, no entanto,
escancara a desigualdade e as dificuldades enfrentadas pelos estudantes e
professores de colégios públicos – acesso limitado à internet, falta de
computadores e de espaço em casa, problemas sociais, sobrecarga de trabalho
docente e baixa escolaridade dos familiares.
Nesta reportagem, conheça a
história de alunos, pais e professores que relatam os obstáculos da
educação remota. Eles serão apresentados em quatro eixos:
estrutura: problemas de
acesso a computadores e de conexão com internet, falta de espaço apropriado
para o estudo em casa;
relação família-escola: dificuldade
de professores entrarem em contato com os pais dos alunos, baixa escolaridade
dos familiares e esgotamento emocional dos docentes, que ficam disponíveis 24h
para tentar ajudar;
problemas sociais: falta de
merenda, evasão escolar e maior exposição à violência (sexual, física ou
psicológica);
conteúdo: professores que
não foram preparados para ministrar aulas online e dificuldade em adaptar
conteúdos.
Segundo Mauricio Canuto,
professor de didática no Instituto Singularidades (SP), o que está sendo feito
pelas escolas não pode ser chamado de "educação à distância" – é um
regime emergencial de ensino remoto.
"Não é uma situação
estruturada: faltam equipamentos, não há acesso à internet, as pessoas não
dominam as tecnologias digitais. A EAD pressupõe que todos estejam conectados e
integrados", explica.
OS PROBLEMAS DE ESTRUTURA
1- Sem acesso à internet
Larissa Bittencourt é professora
de sociologia em uma escola estadual de Venâncio Aires (RS), município de 70
mil habitantes. Ela conta que suas turmas de ensino médio têm alunos de
diferentes classes sociais – e que, na educação remota, a desigualdade está
mais evidente.
“Alguns jovens moram na roça e já
enfrentam dificuldades para frequentar presencialmente a escola. Agora, então,
sem sinal de telefone ou de internet, estão completamente afastados”, conta.
"A gente simplesmente não
consegue entrar em contato com eles. E o colégio não tem estrutura de recursos
humanos para procurar fisicamente cada família e levar material impresso na
porta das casas."
Segundo a pesquisa TIC
Domicílios, divulgada em 2019, apenas 44% dos domicílios da zona rural
brasileira têm acesso à internet. Na área urbana, o índice é bem mais
alto: 70% dos lares estão conectados. O estudo, feito anualmente pelo Centro
Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic),
é um dos principais no país no segmento de acesso a tecnologias.
As diferenças ficam ainda mais
evidentes ao se analisar cada classe social: entre os mais ricos (classes
A e B), 96,5% das casas têm sinal de internet; nos patamares mais
baixos da pirâmide (classes D e E), 59% não consegue navegar na
rede.
Em nota, a secretaria estadual do
Rio Grande do Sul afirma que, para os alunos sem conexão, houve "a
distribuição presencial de tarefas e de materiais didáticos aos pais ou
responsáveis pelos estudantes".
2- Só celular, sem computador
Guilherme Lima, de 15 anos, é
aluno da rede estadual de Caieiras, município na zona metropolitana de São
Paulo. Ele mora com os pais e com dois irmãos em idade escolar.
"A gente tem celular, mas
sinto muita falta de um computador ou de um tablet. Fica difícil de enxergar
alguns conteúdos na tela pequena", conta Guilherme. “Sinto que estou
ficando com o conteúdo muito defasado, não entendo a matéria. Enquanto alguns
têm dois ou três notebooks em casa e só usam um, a gente não tem nenhum."
De acordo com a TIC
Domicílios, entre a população cuja renda familiar é inferior a 1 salário
mínimo, 78% das pessoas com acesso à internet usam exclusivamente o celular.
Canuto, do Instituto
Singularidades, reforça a importância de levar em conta a realidade tecnológica
das famílias ao estruturar o ensino remoto.
“Precisaríamos pensar em quem não
tem acesso à internet ou só usa celular. Copiar conteúdo de uma tela de 4
polegadas é muito difícil, ainda mais para as crianças. Uma proposta seria
preparar e entregar um material impresso”, sugere o professor.
3- Professor precisa usar celular
pessoal
Não são só os alunos que se
queixam da falta de equipamentos adequados para a educação remota. Juliana
Souza* é professora de geografia em uma escola estadual de Caieiras (SP).
Durante a quarentena, ela está indicando vídeos e leituras para os estudantes. “Não
pretendo gravar aulas, porque preciso aceitar minha realidade. Não tenho
aparelhos com tecnologia suficiente", diz.
Segundo ela, o ideal seria a
secretaria estadual de educação disponibilizar equipamentos para os
professores.
"Nosso celular virou instrumento
de trabalho. Não autorizei que usassem meu número para colocar em grupos de
WhatsApp com alunos. Ninguém garante minha segurança e minha privacidade, não
sei o que poderiam fazer com o meu contato”, afirma a professora.
O que complica a situação é a
dificuldade no uso de plataformas on-line. Os celulares de alguns
pais e alunos não têm memória suficiente para instalar aplicativos –
e as famílias enfrentam problemas em entender como os programas funcionam.
O uso do WhatsApp, mais comum,
acaba sendo a solução para transmitir as informações. Consequentemente, os
professores recebem mensagens durante todo o dia, no aparelho pessoal.
Procurada, a Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo não se pronunciou sobre a falta de equipamentos
tecnológicos para os docentes. Afirmou que disponibilizou internet gratuita a
eles e aos alunos e que produziu manuais de orientações de estudo para as
famílias. Também declarou "estar preparando ações de reforço
escolar".
Flávia da Silva, que leciona em
escolas públicas de Itumbiara (GO), conta que nunca havia passado seu contato
particular para os pais de alunos, ao longo dos mais de 16 anos de carreira na
rede municipal.
“No último domingo, estava
atendendo ligação às 3 da tarde. Eram alunos com dificuldades, com dúvidas. Eu
atendi e dei as orientações, mas é complicado”, diz.
Em nota, a Secretaria de Estado
da Educação de Goiás afirmou que "cumpre o calendário escolar aprovado
pelo conselho, que determina as aulas de segunda a sexta-feira excetuando-se
feriados e pontos facultativos" e que "essa carga horária precisa ser
mantida pelos professores, o que têm ocorrido normalmente".
4- Falta espaço em casa
A garçonete Samantha Zduniak mora
em uma casa com quarto e cozinha, com mais cinco pessoas: três filhos em idade
escolar, com aulas remotas, e duas irmãs, sendo uma aluna de curso à distância.
Samantha trabalha na prefeitura
de Franco da Rocha, na zona metropolitana de São Paulo. "Acordei hoje, às
6h da manhã, e uma das minhas irmãs estava sentada na escada, estudando. Ela
precisa de silêncio e de espaço. As crianças fazem barulho e também precisam do
celular", conta.
Ela disse que há ainda outras
dificuldades: o sinal de internet oscila muito, interrompendo as aulas de
todos. Sua filha Sabrina, de 17 anos, é aluna do terceiro ano do ensino médio e
está se preparando para o vestibular.
“É um desespero. Enquanto as
escolas particulares têm estrutura, professores à disposição, a gente está à
mercê. Minha filha precisa esperar que eu chegue em casa para poder usar meu
celular”, afirma. “É um sistema excludente. Quero que meus filhos tenham
estudo, consigam um bom desempenho no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio].
Mas, para as classes mais baixas, está cada vez mais difícil”, completa.
O CONTATO COM A FAMÍLIA
1- Onde os alunos moram?
Endereços não são encontrados
Roberto Azevedo* dá aula para
alunos de 7 e 8 anos, em uma escola municipal no Capão Redondo, na periferia da
capital paulista. Como os pais não estavam conseguindo usar a plataforma
indicada pela prefeitura, o professor entrou em contato com a escola e pediu
fotos das fichas dos alunos. Cadastrou todos os contatos no celular e montou um
grupo de WhatsApp, pelo qual envia as atividades.
O problema é que nem todos os
contatos estão atualizados – das 28 crianças da turma, sete não tinham
telefones dos pais cadastrados na ficha escolar.
"Não consigo falar com
algumas famílias, estou muito preocupado. Uma delas é a de um aluno que não
conhece ainda as vogais. Pedi ajuda para os outros pais, quero descobrir onde
ele mora. Vou imprimir atividades na minha casa e levar, de carro, até a
casa dele. Coloco luva, máscara, tudo certinho, só não quero que ele fique
afastado tanto tempo”, afirma o professor.
Canuto, do Instituto
Singularidades, observou a mesma questão na escola estadual onde trabalha como
auxiliar de direção: apenas 20% dos 1 mil alunos tinham contatos
atualizados no cadastro.
Procurada, a Secretaria Municipal
de Educação informou que mais de 1 milhão de alunos "terão como ponto
focal o material impresso e os gestores e professores que puderem utilizar o
meio digital como forma de complementar o atendimento aos estudantes
paulistanos".
A pasta também informou que
disponibilizou o material “Trilhas e Aprendizagens”, com explicações sobre como
os pais podem organizar a rotina de estudos dos filhos, e postou para os
estudantes da rede municipal todos os materiais, que devem ser entregues pelos
Correios até o fim da próxima semana.
2- Pais não se sentem capazes de
ajudar
Martha Rodrigues é empregada
doméstica em São Paulo e tem três filhos – de 9, 13 e 16 anos. O mais novo,
Paulo, exige dedicação maior da mãe nas aulas remotas.
“Está muito complicado para mim.
Não terminei meus estudos, só fui até o sexto ano, então tenho muita
dificuldade de ajudar. Eu tento ler as apostilas dele, para ver se entendo
algo, mas é complicado”, diz.
Uma pesquisa divulgada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017 mostra uma correlação
entre o nível de escolaridade da família e a chance de o filho concluir a
universidade. Segundo o estudo, 69% dos jovens cujos pais terminaram o
ensino superior também concluíram a graduação. Por outro lado, a
probabilidade de alguém que não frequentou a escola ter um filho com diploma
universitário é de apenas 4,6%.
3- Professores sobrecarregados e
disponíveis 24h para ajudar os pais
O professor Azevedo conta que,
desde que as aulas foram suspensas, passou a trabalhar em regime integral.
“Acordo e durmo trabalhando. A
escola pediu para estipularmos um horário, mas os pais nunca estão disponíveis
durante o dia, porque também têm seus empregos. Uma mãe sempre chega às 23h e
me manda mensagem com dúvida. Vou deixar de responder? Não vou”, diz.
Ele afirma que, "se der as
costas para as mães, elas também vão dar as costas". “A gente sabe da
realidade das famílias. Sabe que os pais não têm obrigação de saber ajudar como
se fossem professores. Então, reforço que podem me procurar a qualquer hora,
que nenhuma dúvida é boba”, completa.
Evidentemente, disponibilizar-se
de forma integral traz a sobrecarga de trabalho. E é preciso lembrar que boa
parte dos professores leciona em mais de um colégio.
Segundo o Censo Escolar,
divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), 47,3%
dos professores de ensino médio dão aula em dois turnos. E 43,7% têm de 50
a 400 alunos, em uma ou duas escolas e em duas etapas (lecionam também no
ensino fundamental I ou II).
FORMAÇÃO DOS PROFESSORES
A professora Juliana Souza conta
que está com dificuldade de mexer nas plataformas de aula on-line. “Dei um
escândalo na escola, porque não sei usar tantos recursos digitais. É muita
ferramenta: centro de mídia, Teams, Google Classroom. O professor fica maluco.
Estou no meu limite, o dia todo conectada, não dá para continuar assim. É muita
pressão, muita mudança”, conta.
Segundo Marcus Vinicius Maltempi,
vice-coordenador do Instituto de Educação e Pesquisa em Práticas Pedagógicas da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), a formação
docente no Brasil é “analógica” e não prepara os professores para atuarem no
ensino à distância.
“O obstáculo vai ser ainda maior.
A tendência é que queiram filmar uma aula e passar para os alunos. Eles foram
formados para pensar assim. Só que os vídeos ficam longos e cansativos. A
licenciatura não costuma abordar alternativas", diz.
Canuto complementa dizendo que a
escola precisa disponibilizar uma formação remota, para que o corpo docente
seja orientado a adaptar o formato da aula. “Como um professor offline vai
pensar, sozinho e de repente, em ensinar on-line? Requer um processo de
preparo”, diz.
FOME, VIOLÊNCIA, EXCLUSÃO: OS
PROBLEMAS SOCIAIS
Cristiane Irineu é mãe de gêmeos
autistas não-verbais: Gabriel e Lucas, de 16 anos. Eles estudam em uma escola
municipal na zona sul de São Paulo, em classe comum (ou seja, junto com
estudantes sem deficiência). Segundo ela, os jovens não recebiam, nas
aulas presenciais, conteúdos ou avaliações adaptados – apenas estavam
"fisicamente presentes". Como não são alfabetizados e não falam,
essas adaptações seriam fundamentais.
“Agora, então, estão mais
excluídos ainda. A escola não mandou nenhuma atividade diferenciada para eles.
Só videoaulas para os que não têm deficiência. Eles estão em casa, desocupados,
ansiosos”, diz Cristiane.
Por mais que a escola dos gêmeos
não coloque em prática a inclusão correta, ela ainda cumpre a função de ajudar
os meninos na socialização – justamente um elemento de dificuldade para pessoas
do espectro autista. E não é apenas para os grupos de alunos com deficiência
que os colégios adquirem um papel além do pedagógico.
“A educação tem um caráter
importantíssimo de proteção social. A grande maioria das crianças e dos
adolescentes da rede pública vive em vulnerabilidade. A merenda vai fazer
falta. As aulas presenciais tiram os alunos de ambientes de violência física,
sexual e psicológica”, afirma Raquel Franzin, coordenadora da área de educação
no Instituto Alana.
No sertão nordestino, 10 mil
crianças e jovens de 130 povoados de Alagoas, Pernambuco e Ceará frequentavam
centros educacionais do projeto Amigos do Bem – recebiam cinco merendas diárias
e tinham aulas de reforço. Por causa da pandemia, os locais estão fechados.
Segundo José Santos, coordenador
pedagógico, os alunos do sertão moram em casas de barro, aglomerados, sem
acesso a itens básicos de higiene pessoal. Não há sequer água.
"As crianças estão sem
atividade, passando fome, sem ter o que comer”, diz.
REVISÃO DE PLANEJAMENTO PARA
EVITAR EVASÃO
Franzin, do Instituto Alana,
explica que os projetos político-pedagógicos das escolas públicas devem ser
revistos, pensando em cada comunidade.
“Precisamos cultivar o vínculo
deles com o processo de estudar, de aprender. Não é apenas cumprir horas ou
enviar tarefas. Os conteúdos impostos não consideram, em geral, a
realidade do aluno", diz.
Ela sugere a revisão das
estratégias de ensino. O ideal seria que os pais contassem histórias para as
crianças do primeiro ano, por exemplo. Mas nem todos são alfabetizados.
“Precisamos pensar em alternativas: que tal desenharem juntos, narrando algum
acontecimento da semana? E se treinarmos a leitura com uma embalagem da
cozinha, se não tivermos livros em casa?”, afirma.
O objetivo principal, segundo
ela, vem antes de cumprir programas de conteúdo: é evitar a evasão escolar.
“Após períodos de guerra ou de crises humanitárias, muitas crianças e jovens
não voltam para a escola. Precisamos evitar que isso ocorra”, diz Franzin.
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