Entre 2000 e 2002, Flávio
Bolsonaro, então com 19 anos, acumulou três ocupações em duas cidades
diferentes: faculdade presencial diária de Direito e estágio voluntário duas
vezes por semana no Rio de Janeiro, e um cargo de 40 horas semanais na Câmara
dos Deputados, em Brasília.
Ocupadas ao mesmo tempo por quase
um ano, todas essas atividades exigiam a presença física do primogênito do
presidente Jair Bolsonaro (PSL) e hoje senador eleito pelo PSL-RJ, segundo as
instituições ouvidas pela BBC News Brasil.
A faculdade e o estágio integram
o histórico de Flávio Bolsonaro tanto no LinkedIn quanto no site da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro. Não há referência, no entanto, ao cargo
parlamentar em seus dois currículos disponíveis na internet.
A ocupação na Câmara consta,
entretanto, na declaração do Imposto de Renda dele de 2001 entregue à Justiça
Eleitoral, no portal de transparência da Casa e no Diário Oficial da União.
Procuradas, a assessoria de imprensa
de Flávio Bolsonaro afirmou que não iria responder aos questionamentos da BBC
News Brasil e a assessoria do presidente Jair Bolsonaro não respondeu até a
publicação desta reportagem.
O posto de assistente técnico de
gabinete foi ocupado por Flávio na liderança do PPB, partido pelo qual Jair
Bolsonaro havia sido eleito para seu terceiro mandato na Câmara. Esse mesmo
posto comissionado foi ocupado antes por outro membro da família de Jair
Bolsonaro: a então mulher dele, Ana Cristina Siqueira Valle, deixou o cargo uma
semana antes de ser substituída por Flávio.
Presença obrigatória
Não há informações públicas
disponíveis sobre os salários pagos a Flávio e Ana Cristina à época. Mas,
segundo declaração do Imposto de Renda de Flávio, o cargo de assistente técnico
de gabinete rendeu em 2001 o equivalente a R$ 4.712 por mês, ou R$ 13,5 mil em
valores corrigidos.
Esses cargos comissionados
alocados nas lideranças de partidos na Câmara (considerados cargos de natureza
especial, ou CNE) são ocupados a partir de indicações por critérios políticos
e/ou técnicos. Em geral, os escolhidos são militantes ligados ao comando do
partido; servidores concursados em outros órgãos públicos que recebem um
adicional para trabalhar no Congresso; ou apadrinhados dos deputados da sigla,
que em alguns casos loteiam os cargos do escritório da liderança entre si.
As normas da Câmara determinam
que essas funções só podem ser exercidas pelos funcionários em Brasília.
Questionada pela BBC News Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação sobre a
norma vigente à época, a Câmara dos Deputados afirmou que os cargos de natureza
especial, como o ocupado por Flávio nos anos 2000, "têm por finalidade a
prestação de serviços de assessoramento aos órgãos da Casa, em Brasília. Desse
modo, não possuem a prerrogativa de exercerem suas atividades em outra cidade
além da capital federal".
No mesmo período em que ocupava
esse cargo em Brasília, Flávio relata em suas páginas no LinkedIn e no site da
Assembleia Legislativa fluminense que exercia outras duas atividades: faculdade
de Direito na Universidade Candido Mendes e estágio na Defensoria Pública do
Rio de Janeiro.
Procurada pela BBC News Brasil, a
Defensoria Pública afirma não haver registro de que Flávio Bolsonaro tenha
atuado formalmente no órgão, mas informa que um defensor público do núcleo de
sistema penitenciário (que não quis ser identificado na reportagem) relata que
Flávio foi seu estagiário voluntário duas vezes por semana.
Não há informações precisas sobre
o período em que esse estágio ocorreu. O parlamentar divulga duas datas
diferentes nas duas versões de seu currículo: de março de 2001 a janeiro de
2002 (no LinkedIn) e de agosto de 2000 a outubro de 2001 (no site da Assembleia
Legislativa). Não havia pagamento de bolsa de estudos, controle de frequência
ou carga horária mínima, mas o jovem era "assíduo e interessado",
segundo o tutor, que respondeu a perguntas da BBC News Brasil por meio da
assessoria de imprensa da Defensoria Pública.
Descrição semelhante de Flávio
Bolsonaro é feita por dois estudantes contemporâneos dele na Universidade
Candido Mendes, com quem a BBC News Brasil conversou. Eles pediram para não ser
identificados na reportagem.
Controle por chamada
O curso de Direito tinha carga
horária diária média entre quatro e cinco horas nos dois primeiros anos e a
presença dos alunos era controlada à época por chamada, segundo dois
ex-professores e dois ex-alunos, que afirmaram à reportagem terem sido colegas
de Flávio em disciplinas matutinas. Procurada, a Candido Mendes não informou em
que turnos Flávio cursou suas disciplinas por questões de privacidade.
Como, então, o filho mais velho
de Jair Bolsonaro conseguiu conciliar estágio voluntário e faculdade privada no
Rio de Janeiro com emprego público em Brasília, duas cidades distantes em mais
de 1.000 km ou quase uma hora e meia de voo?
Registro mensal do ponto na
Câmara
A experiência profissional de
Flávio Bolsonaro em um cargo comissionado na Câmara dos Deputados não aparece
nos perfis publicados em seu site oficial, no site da Assembleia Legislativa do
Rio e em sua página na rede LinkedIn.
Flávio Bolsonaro ocupou o posto
de assistente técnico de gabinete de dezembro de 2000 a junho de 2002, quando
saiu a pedido. Meses depois, se elegeu deputado estadual do Rio pelo próprio
PPB.
O controle de presença de Flávio
Bolsonaro entre dezembro de 2000 e junho de 2002 era feito por meio de folha
com a frequência mensal, em vez de ponto diário. Nesse modelo, a chefia do
gabinete da liderança do PPB enviava todo mês à direção da Câmara um relatório
com os dias em que Flávio trabalhou. Esse tipo de controle mais flexível é uma
opção prevista nas normas internas da Casa.
Essa função ocupada por Flávio é
paga com recursos do orçamento da Câmara dos Deputados e tem 15 atribuições
previstas em lei. Dentre elas, acompanhar e relatar reuniões plenárias e de
comissões na Câmara, prestar assistência regimental a deputados, elaborar
pareceres e orientar parlamentares em votações e discussões na Casa e
"transmitir, acompanhar e executar o cumprimento das instruções do Chefe
de Gabinete". Segundo o ato da Mesa Diretora da Câmara nº 45, de 17 de
outubro de 1996, um funcionário que ocupa o mesmo cargo de Flávio pode ser
"encontrado na administração e nas lideranças" da Casa.
De acordo com os dados oficiais
mais recentes, há 1.671 funcionários na Câmara em cargos de natureza especial.
Estes são diferentes dos chamados secretários parlamentares (SP), que são
lotados nos gabinetes dos deputados e autorizados por lei, caso seja
necessário, a atuarem nas bases político-eleitorais dos parlamentares fora de
Brasília.
Atualmente, há 16 níveis de
remuneração para os CNEs que Flávio e a ex-mulher de Jair Bolsonaro ocuparam.
Como assistente técnico de gabinete, Flávio recebeu R$ 56.548,63 em 2001 pelos
12 meses de trabalho naquele ano, segundo sua declaração do Imposto de Renda
entregue à Justiça Eleitoral em 2002. De acordo com correção monetária pelo
Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), o montante totaliza R$
162.132,81 em valores atuais, ou R$ 13,5 mil por mês.
Nesse documento, Flávio informou
também morar em um apartamento na Tijuca (pertencente a sua mãe) e ser dono de
um automóvel Gol 1.0 16v Turbo, modelo do ano, avaliado em R$ 25,5 mil (R$ 73,1
mil em valores atuais, também segundo o INPC).
Carga horária no estágio e na
faculdade
Além do cargo que ocupava em
Brasília, o então universitário Flávio Bolsonaro também era estagiário na
Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Segundo advogados ouvidos pela BBC News
Brasil que estagiaram no início dos anos 2000 no órgão, a carga horária e as
atribuições do estágio formal na instituição variavam de acordo com o defensor
público responsável pela orientação. Em geral, ocupavam ao menos oito horas
divididas em dois dias por semana e atreladas ao expediente do Tribunal de
Justiça, de 11h às 18h.
Flávio Bolsonaro era, segundo a
Defensoria fluminense, um estagiário voluntário sem qualquer vínculo formal com
a instituição. De acordo com os estagiários formais daquela época, quem é
voluntário ali tem contatos no órgão para conseguir a vaga, tem tempo livre,
quer atuar e aprender mesmo sem conseguir passar no concurso oficial e/ou busca
prestar serviço social, por não haver previsão de bolsa de estudo. Nos dois
currículos, Flávio se refere a essa atividade apenas como estágio, sem detalhar
se era voluntário. Ele não foi pago pela função.
"Lembro com bastante carinho
do meu período na Defensoria Pública, no início da faculdade, aprendi muito,
fiz muitos amigos", afirmou o político em audiência pública na Comissão de
Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, em abril de 2012.
Flávio começou a estudar Direito
em 2000 na unidade da Candido Mendes no centro do Rio de Janeiro e se formou em
2005, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O curso privado hoje tem
carga horária total de quase 4.000 horas (incluindo estágio obrigatório)
distribuídas em seis dezenas de disciplinas ao longo em dez semestres. O
tamanho da grade curricular, segundo funcionários da instituição, variou pouco
nos últimos 20 anos.
A carga horária podia ser
cumprida pelos estudantes, caso quisessem ou precisassem, em disciplinas
espalhadas pelos três turnos (manhã, tarde e noite). A frequência mínima
exigida é de 75% das aulas.
O campus em que Flávio estudou
fica perto da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), à qual ele se
elegeu, ainda estudante, na eleição de 2002 pelo mesmo partido em que trabalhou
na Câmara naquele ano, o PPB - pela sigla também se reelegeu seu pai para a
Câmara dos Deputados naquele ano, como o 21º candidato mais votado do Rio.
De 2003 a 2005, Flávio passou a
conciliar faculdade e atividade parlamentar na Alerj. Em discurso na Casa em
2008 contra a obrigatoriedade do exame da OAB, o então deputado estadual
afirmou: "Fiquei cinco anos estudando na faculdade de direito da Candido
Mendes, aqui, no centro da cidade, dentre esses cinco anos, dois dedicados à
prática forense, mais algumas centenas de horas de atividades
extracurriculares, muito sacrifício, muita dedicação."
Flávio, que obteve a carteira
profissional da entidade em julho de 2006, afirma que o exame da ordem leva
faculdades de Direito a prepararem profissionais para passar nessa prova, em
vez de capacitá-los para o exercício da profissão, além de reduzir a oferta de
advogados para a população.
Os dois currículos de Flávio não
detalham esses dois anos dedicados à prática forense.
Histórico de cargos para
familiares de Jair Bolsonaro
Ao longo das quase três décadas
em que Jair Bolsonaro atuou como deputado federal, outros familiares dele
trabalharam na Câmara dos Deputados.
A contratação de parentes nos
três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) foi proibida somente a
partir de 2008, após súmula do Supremo Tribunal Federal. A partir dali, ficaram
proibidas, por exemplo, contratações de parentes de autoridades e de
funcionários para cargos de confiança e em comissão, segundo a Câmara dos
Deputados. A proibição também atinge o chamado nepotismo cruzado, em que dois
políticos, por exemplo, contratam familiares um do outro.
A segunda mulher de Bolsonaro,
Ana Cristina Siqueira Valle, que já tinha experiência profissional legislativa
em outros gabinetes e comissões na Casa, ocupou o mesmo posto de assistente
técnico de gabinete que Flávio Bolsonaro na liderança do PPB na Câmara. Ela
ficou entre novembro de 1998, ano em que nasceu Jair Renan Bolsonaro, filho do
casal, e dezembro de 2000.
O pai de Ana Cristina, José
Cândido, a mãe, Henriqueta, a irmã, Andrea, e o irmão, André Luís, também
ocuparam postos na Câmara antes da mudança da regra, mas no próprio gabinete do
então deputado Jair Bolsonaro. Este negou ao jornal O Globo, que noticiou parte
dessas contratações, quaisquer irregularidades na contratação dessas pessoas em
cargos públicos e afirmou que não era casado formalmente à época, o que
afastaria um eventual nepotismo.
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