RIO — À medida que eram divulgadas as primeiras notícias sobre a operação que prendeu, na manhã desta sexta-feira, delatores do Grupo J&F
, um acalorado e centenário debate literário era travado por leitores
de vários cantos do país nas redes sociais: afinal, Capitu traiu ou não
Bentinho com seu amigo Escobar?
Isso porque a Polícia Federal batizou a operação
desta sexta-feira com o nome da personagem de "olhos de cigana oblíqua e
dissimulada" do clássico "Dom Casmurro" (1899), de Machado de Assis. A
referência literária logo ficou entre os assuntos mais comentados do
Twitter. Para muitos usuários, ao batizar a operação de Capitu, a PF
"condenou" a personagem.
Em nota oficial divulgada à imprensa, a PF explicou a
homenagem à obra. Segundo a instituição, empresários e funcionários do
grupo J&F praticaram obstrução de Justiça "com o objetivo de desviar
a PF da linha de apuração adequada" e que daí vem o nome Capitu, que batiza a operação, "a personagem dissimulada da obra prima de Machado de Assis, Dom Casmurro."
Para o acadêmico Domício Proença Filho, membro da
Academia Brasileira de Letras (ABL) e autor de "Em Capitu — Memórias
póstumas" — obra em que a personagem apresenta sua própria versão para
os fatos narrados em "Dom Casmurro" — a Polícia Federal privilegiou a
interpretação e a imagem de Capitu criadas por seu ex-marido, Bento
Santiago, o Bentinho, narrador do livro.
— Foi assumida a interpretação de Bentinho.
É uma entre dezenas. A Capitu é uma personagem fascinante porque é
engimática. O livro não admite uma interpretação única — analisa o
imortal da ABL.
Até 1960, explica Domício, a interpretação de que
Capitu traiu Bentinho, centrada no suposto adultério, era dominante.
Tudo mudou quando a crítica americana Helen Caldwell publicou "O Otelo
Brasileiro de Machado de Assis". Nele, o ciúme do narrador é colocado no
centro de "Dom Casmurro".
— Muda o rumo da interpretação. O romance do
adultério não é o mais importante. O romance se abre para uma série de
temas. É um romance sobre o cíúme, sobre o ressentimento. É também sobre
a ditadura da aparência. Há várias interpretações, porque tem uma
ambiguidade muito grande. Ali você encontra vários temas.
Especialista nos diálogos entre a obra de Machado de
Assis e a cultura greco-romana, o professor Edson Ferreira Martins, da
Universidade Federal de Viçosa, concorda com a avaliação de Domício. Em
seu ensaio "A póética da dissimulação: sobre a apropriação da História
Romana em um episódio de Dom Casmurro", ele demonstra como Machado
reescreve a história trágica de amor entre Massinissa (rei numida,
aliado de Roma, e um dos quatro medalhões que enfeitam a sala da antiga
casa de Bentinho na Rua de Matacavalos) e Sofonisba, sua mulher,
descrita como bela, inteligente e que precisa por fim à própria vida,
vítima das acusações dos homens poderosos daquele tempo.
— Capitu
é uma atualização dessa personagem, Sofonisba, que Machado colheu em
historiadores romanos, como Tito Lívio, e que reescreve noutro tempo e
lugar como Capitu. Sofonisba morre tomando, estoicamente, uma taça de
veneno. Bentinho tenta, por sua vez, destilar esse veneno contra Capitu,
através das memórias bastante subjetivas que põe no papel. O jogo de
xadrex do texto machadiano esconde essas artimanhas que o leitor arguto
precisa descobrir — diz o pesquisador, que também dirige o documentário
“Machado de Assis: um canibal nos trópicos”, que será lançado em
dezembro.
Edson lembra ainda que o nome Capitu pode ser
associado, pela massa sonora da palavra, ao substantivo “Capeta”, o que
contribui para a demonização da mulher, considerada perigosa, negativa e
dissimulada. O professor da Federal de Viçosa destacaque a polêmica
literária envolvendo a suposta traição
ganhou repercussão jurídica, quando, em 1999, o Supremo Tribunal
Federal (STF) realizou o julgamento do caso. Na ocasião, o jurista José
Paulo Sepúlveda Pertence, ministro do Tribunal, depois de considerar os
argumentos apresentados pela acusação e pela defesa, decidiu pela
absolvição da ré, dada a insuficiência de provas, concluindo por ser
"irrelevante a indagação".
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