segunda-feira, 19 de junho de 2017

Saiba o que está por trás da polêmica entre forrozeiros e sertanejos nas festas juninas

Troca de farpas públicas sobre a presença do sertanejo no São João nordestino traz à tona o desafio de manter a tradição sem frear as mudanças inerentes à cultura
Artistas trocaram farpas publicamente. Foto: Montagem/DP 

A disputa é bastante antiga, mas neste ano ganhou ares de Fla x Flu. De um lado, na defesa, três baluartes do folclore nordestino: sanfona, triângulo e zabumba. Do outro, no ataque, a juventude de um gênero nascido da reinvenção da tradicional música caipira e tornado, de longe, o mais popular do Brasil. Em jogo, não está necessariamente o gosto do público, mas o espaço na grade de programação de festas realizadas pelos poderes municipais e estaduais durante o período junino.

Como ocorre todos os anos, forrozeiros de pé-de-serra demonstraram, no fim de maio, incômodo frente à suposta diminuição de oportunidades para se apresentar em polos conhecidos pelas festividades de São João, como Campina Grande e Caruaru. O inimigo, no entanto, materializou-se na criticada “invasão” do ritmo responsável por 87% das músicas mais tocadas no Brasil em 2016, segundo a Crowley, o sertanejo.

Após circular pelas redes sociais, a campanha #DevolvaMeuSãoJoão, encampada por Joquinha Gonzaga e Chambinho do Acordeon, ganhou força com o apoio público da cantora Elba Ramalho, cujos argumentos se centraram na ausência de forrozeiros na programação das festas de peão de boiadeiro. Dias depois, do palco do São João da Capitá, a sertaneja Marília Mendonça retrucou a fala da colega e defendeu a qualidade musical como espécie de critério de seleção natural no meio artístico. O nível da discussão ganhou tons mais belicosos quando o cearense Alcymar Monteiro divulgou áudio criticando duramente a cantora goiana, a ponto de classificar o trabalho dela como “breganejo horroroso”, “porcaria” e “música para cachaceiros”. Outros artistas se manifestaram sobre o assunto.  

A polêmica também divide pesquisadores. Para o historiador Adriano Marcena, autor do livro Dicionário da diversidade cultural pernambucana, o forró está longe de ser algo exclusivamentedos dos nordestinos. Pelo contrário, faz parte do patrimônio musical do Brasil e, portanto, qualquer um pode se utilizar do gênero, e até reinventá-lo, se for o caso.

“A grande caracteristica da cultura é ser ressignificada. Luiz Gonzaga colocou o triângulo e a guitarra no pé-de-serra. Isso poderia ter sido visto, na época, como uma quebra com a tradição mais antiga. A cultura é dinâmica, se reinventa. Abrir espaço para o sertanejo é um caminho possível, como seria levar o forró pé-de-serra para a festa de São João do Rio Grande do Sul”, exemplifica.

Na opinião de Marcena, o embate é semelhante à rivalidade entre frevo e axé music durante o carnaval e, de certa forma, ajuda a fortalecer o forró. Quanto ao argumento da falta de reciprocidade entre o São João nordestino e as festas de peão de boiadeiro, o pesquisador relativiza: “Enquanto manifestação cultural, não é um depoimento válido. Mas, enquanto um movimento de articulação política e difusão da cultura, pode vir a ser. É uma questão de mercado”. Já o historiador carioca Gustavo Alonso, autor de Cowboys do asfalto: Música sertaneja e modernização brasileira, aponta uma diferença crucial para a falta de barreiras ao sertanejo. 

Segundo ele, ao longo da história, o gênero incorporou outras vertentes, inclusive com o forró. “Se você for observar a questão estética, a música Ai, se eu te pego é um forró. É fácil encontrar muitos sertanejos que gravam composições de Dorgival Dantas, por exemplo. Você pode até entrar na discussão se esse é um ‘forró de plástico’ ou não, mas não pode negar que os sertanejos dialogam com esse Brasil grande. É de se perguntar, por outro lado, se o forró pé-de-serra dialoga com (a festa de peão de) Barretos”, questiona.

A questão principal, no entanto, deveria ser outra, sinaliza Gustavo Alonso. Para ele, a dependência de verba pública por parte de artistas de ambos os gêneros é um problema central. Isso porque o estado deve, sim, financiar ações culturais, mas não para artistas já estabelecidos e festas já institucionalizadas, como é o caso do São João.

“Não tenho nada contra o show de Elba Ramalho ou de (Wesley) Safadão. Mas por que o estado precisa pagar por eles? Caruaru, por exemplo, tem grandes dificuldades com o transporte público, além de outras lacunas. Por que os empresários não poderiam arcar com esses custos das apresentações? A prefeitura poderia se ocupar em oferecer outras opções culturais ao longo do ano. Existe uma tradição no Brasil de se financiar sempre esse tipo de atividade, por anos, décadas… Isso me incomoda, seja qual for o gênero musical”. 
Preservação a qualquer custo
À frente de uma ala mais conservadora entre os defensores do São João tradicional está o pesquisador pernambucano Renato Phaelante, para quem a festa deveria ser um festejo exclusivo para sonoridades nordestinas. Na opinião dele, a música feita por artistas como Maciel Melo, Xico Bezerra e Petrúcio Amorim já representam uma inovação no gênero, dispensando “Safadões”. “Quando você chega na Argentina, só ouve tango. Pode ter 200 anos, mas tem história e tradição. Na Europa, você chega e ouve uma valsa de Strauss, que é a música popular daquela região. Precisamos curtir melhor o que é nosso, preservar e passar para outras gerações. Afinal, o São João do Nordeste não é igual ao de outros lugares do Brasil”.

Posicionamento semelhante tem o historiador e pesquisador cultural Leonardo Dantas Silva. Para ele, a despeito de Pernambuco ter grandes nomes da música, como Luiz Gonzaga, Zedantas e Mestre João Silva, facilmente a festa de São João é descaracterizada. “Esses rapazes do Centro-Oeste chegam aqui fantasiados de caubói, com chapéu do Texas, e querem mandar na festa da gente e ainda serem pagos com dinheiro público. Hoje em dia você só tem palcos enormes, a ponto de precisar de luneta para ver o cantor. E ainda tem prefeito ignorante achando que está arrasando, promovendo cultura. Se for assim, tudo o que se cria na natureza é cultura. Mas lembre-se que também tem reserva regional. A cultura vale quando é de um povo, sem ser imposta. Basta de colonialismo!”, brada.

Futuro entre o pop e a nostalgia
Para Alexei Alves de Queiroz, professor de música da Universidade de Brasília, algumas confusões cercam as festas juninas em relação à mistura de ritmos musicais. “Antes é importante que a gente faça uma consideração: o forró é um gênero, os outros são estilos. O gênero pode ter vários estilos, que com o tempo vão se expandindo, como um processo natural”, ensina. Queiroz ainda lembra: “Com o passar do tempo, os estilos vão se expandindo, como um processo natural. O gênero surge e as pessoas só vão inserindo estilos, não tem como impedir”.

Sobre o futuro dessa miscelânea musical, ele defende um cronograma quase acadêmico: “O que vamos ter nas próximas décadas é a separação de dois grandes gêneros dentro desse contexto: o festivo - com o pop, o sertanejo - e o nostálgico, que reflete uma tradição. Não digo ‘nostálgico’ no sentido pejorativo, mas é uma designação que precisa captar a atenção dos mais jovens para sobreviver com vigor”, conclui. (Ronayre Nunes)

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